Há um grande problema nas mensagens supostamente espirituais difundidas no Brasil.
Elas não refletem aspectos pessoais dos autores mortos alegados, a não ser semelhanças óbvias ou, se não for o caso, colhidas em fontes ou testemunhos mais diferenciados, como um jornal mais raro ou um ex-professor de um morto, que conhece algo que os pais dele desconhecem.
No caso de estrangeiros, as mensagens saem em português, não em outros idiomas, como latim, alemão ou português.
E o suposto médium pode levar credibilidade pela "carteirada religiosa" e pelo suposto projeto assistencial que desenvolve numa comunidade, através de uma instituição.
A questão mais delicada, porém, reside no caso dos familiares dos mortos.
Até que ponto eles podem ou não acreditar em supostas mensagens atribuídas aos entes que faleceram?
Recentemente, houve o caso de Ryan Brito, filho da atriz e ex-modelo Márcia Brito (na foto, como a Flora Própolis da Escolinha do Professor Raimundo) e seu ex-marido, Nizo Netto, filho do humorista Chico Anysio.
Ryan, possivelmente chapado pela ayahuasca, considerada alucinógena, teria morrido afogado em uma praia em Carapebus, antigo distrito de Macaé e hoje município, no Centro Norte fluminense.
Meses após o óbito, foi divulgada, num "centro espírita" do Campo Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro, uma mensagem atribuída ao espírito de Ryan Brito.
A primeira coisa que Márcia Brito escreveu foi avisar para os "céticos" para, antes de qualquer comentário, conhecer o "trabalho assistencial do médium Fernando Ben".
Só que, como diz o ditado popular, "uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa".
Em primeiro lugar, a mensagem não garante veracidade alguma a respeito da autoria atribuída.
O fato dela citar o telefone celular da mãe e o CPF dela foram detalhes forçadamente inseridos, embora a mãe de Ryan tenha se sentido "surpresa" a ponto de dizer, "impressionada": "Gelei".
Esquece ela que tais informações teriam sido colhidas pelas consultas que ela fez no auxílio fraterno da mesma instituição.
A "mensagem espiritual" também foi difundida à margem das lições do Conselho Universal dos Ensinos dos Espíritos, estabelecido pelo próprio Allan Kardec.
Ele recomenda muito cuidado com mensagens espirituais e aconselha que as pessoas duvidem e busquem as provas mais próximas de veracidade.
Ele mesmo indicou que as pessoas buscassem mensagens espirituais em diferentes fontes mediúnicas, todas sem relação alguma entre si.
Depois de buscar essas mensagens, deve-se analisar o conteúdo para ver se ele é verídico ou falso.
Semelhanças em si não comprovam autenticidade, até porque podem haver muitas semelhanças, algumas até bem sutis e "surpreendentes", mas uma diferença comprometedora é suficiente para anular a veracidade.
Nada disso é feito no Brasil. Tudo é aceito sem críticas, bastando apenas mostrar "mensagens positivas", "lições de vida" e apresentar alguma semelhança banal com algum aspecto pessoal do morto em questão.
E como os familiares encaram isso? Márcia e seu ex-marido Nizo "acreditaram" na suposta veracidade da mensagem do filho morto. Mas isso não é suficiente para dizer que essas mensagens são realmente verdadeiras.
Afinal, em muitos casos, famílias consanguíneas não conseguem conhecer com profundidade os entes queridos.
Em muitas famílias, espíritos estranhos entre si são colocados para conviver juntos e ligados a um mesmo sangue, a um mesmo laço familiar.
Até que ponto Lucinha Araújo pode conhecer a fundo o seu saudoso filho Cazuza? Até que ponto Giuliano Manfredini pode conhecer a fundo a vida do seu pai Renato Russo?
Já houve casos, na atividade de Chico Xavier com as chamadas "cartas mediúnicas", de um pai que desconfiou da mensagem atribuída à falecida filha, em detrimento de outros parentes que acreditaram na mesma.
Oficialmente, prevaleceu a posição dos familiares que acreditaram na "veracidade" da mensagem, mas era o pai que, conhecendo profundamente a filha, via irregularidades na carta.
Em muitos casos, as mães não podem compreender bem a natureza do filho.
Ou o filho que não compreende a natureza do pai ou da mãe.
No caso de Giuliano Manfredini, ele não vivenciou o cenário do Rock Brasil dos anos 1980 e muito menos a cena que gerou o Aborto Elétrico, primeira banda de seu pai.
Giuliano cresceu numa geração que teve Raimundos, Charlie Brown Jr. e similares, que começaram esnobando a geração 80, só tardiamente prestando homenagens ao Renato Russo que chegaram a definir como "brega" e "decadente".
Giuliano chegou a incluir Ivete Sangalo, estranhíssima ao universo da Legião Urbana, para cantar com um constrangedor holograma de Renato Russo num tributo ao cantor.
Até que ponto isso é "conhecer profundamente" o legado de Renato Russo?
E, se, no caso de Raul Seixas, se colocasse um holograma dele "cantando" com Chitãozinho & Xororó?
O roqueiro baiano detestava intérpretes como esta dupla, nunca aceitaria fazer duetos com nomes assim, que aproveitaram a morte do cantor para pegarem carona cantando "Tente Outra Vez".
Recentemente, o reacionário "médium" Robson Pinheiro divulgou mensagem atribuída risivelmente a Tancredo Neves, que "escrevia" como se fosse algum youtuber tardio de 30 e poucos anos.
Tancredo, ex-ministro de Getúlio Vargas, que conviveu com Juscelino Kubitschek e João Goulart e comandava a redemocratização do Brasil pós-ditadura, foi inserido em contexto que parece mais próximo do seu neto, o senador tucano Aécio Neves.
Aécio, de perfil bem mais conservador, é também associado a vários escândalos de corrupção.
Robson, todavia, usava a "mediunidade" para alegar que "espíritos inferiores" estavam associados a políticas progressistas na América Latina.
Um dos livros se intitula A Quadrilha: Foro de São Paulo, aludindo a uma reunião de cúpula com vários líderes de esquerda da América Latina, entre eles o ex-presidente Lula.
Robson Pinheiro levou às últimas consequências o direitismo que os "espíritas" sempre adotaram e se tornou explícito nos últimos anos.
Os "espíritas" apoiaram o Movimento Brasil Livre, o "Fora Dilma", a Operação Lava Jato, o governo Michel Temer, a Escola Sem Partido e as reformas trabalhista e previdenciária.
Os "espíritas" também sonham com nomes para a Presidência da República que variam entre Luciano Huck, Sérgio Moro, Geraldo Alckmin e Jair Bolsonaro.
Mas fazem isso sem aparentemente agredir as esquerdas, pelo menos de maneira explícita.
Robson agrediu as esquerdas, atribuindo "influências espirituais inferiores" durante toda a era petista do Governo Federal.
Divaldo Franco compartilha do mesmo direitismo, sem adotar um discurso ofensivo. É capaz de defender a condenação de Lula, pedindo para ele a "misericórdia de Deus".
Voltando ao caso Tancredo, ele não teria compartilhado dos devaneios reacionários de Robson Pinheiro.
Isso diz muito a pretensas psicografias que atuam movidas pelo wishful thinking de seus supostos médiuns.
Tudo é wishful thinking no "espiritismo". O pensamento desejoso é o combustível da pós-verdade.
O próprio "espiritismo" brasileiro virou a religião maior da pós-verdade, porque outras religiões podem ser obscurantistas, mas não apelam tanto para a roupagem "racional" de mentiras e meias-verdades como fazem os "espíritas".
E isso também nos faz refletir sobre a falta de intimidade nas famílias.
Daí que as "psicografias" exigem muito mais de ceticismo e cautela do que se imagina.
Não é começando por "querida mamãe" e terminando com "vamos nos unir na paz em Cristo" que se vai atribuir veracidade ou antenticidade.
Mensagens não são verdadeiras ou autênticas porque são agradáveis. Assim como certos alimentos não são nutritivos porque são saborosos.
Falta muito cuidado, mundo semancol, muita cautela e vigilância num país cuja boa parcela da sociedade se torna refém de suas próprias emoções.
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