(Por Demétrio Correia)
Um homem retorna à chamada "pátria espiritual", depois de uma vida de futilidades.
Diante de sua vida desregrada, não sendo necessariamente de perversidades, mas de abusos no lazer e no sexo, ele acabou sendo atraído para zonas onde se agrupavam espíritos inferiores.
Essas zonas, denominadas "umbrais", são na verdade ambientes construídos pela convenção de uma psique comum de espíritos marcados pelo atraso moral e intelectual.
O homem, que chamaremos de Fulano, ficou bastante chocado com a aparência dos espíritos, que, nas suas paixões materialistas, contraíam aparências monstruosas por conta de seus maus instintos.
Mas Fulano ficou ainda mais chocado quando prestou mais atenção à aparência dos zumbis.
Viu em vários deles uma forte semelhança com aqueles que, na Terra, pareciam estar destinados ao Céu.
Ele se dirigiu a um homem, que em Terra parecia um cinquentão elegante, amigo da bela palavra, e que estava em frangalhos parecendo uma versão monstruosa do que era em vida.
- O que você está fazendo aqui, meu amigo? Que estado lastimável é o que você se encontra!
- Pois é - disse o infeliz, amargando um olhar tristonho. - Fui um palestrante espírita na Terra. Toda a vida me dediquei à bela palavra, aos bons atos, fui simpático com todo mundo, achava que pregava o amor, a fé, a perseverança.
- E o que você faz aqui neste ambiente tão sombrio. Não é para você estar ao lado de Jesus? - perguntou Fulano.
- Eu tinha certeza que sim. Mas me lembraram, quando voltei ao mundo espiritual, eu havia feito textos e palestras defendendo o sofrimento alheio.
- E o que você fez?
- Eu me expliquei. Disse que não defendia o sofrimento, o que eu quis dizer é que o sofrimento é um aprendizado e um desafio e que aquela coisa de "inimigo de si mesmo", no meu texto "O Pior Inimigo da Pessoa", era uma metáfora para o combate aos maus instintos.
- E o que disseram os funcionários do Céu?
- Eles me falaram que eu fui taxativo no texto e que não viu metáfora alguma. E fui informado de que dois suicídios haviam ocorrido sob influência do texto "O Pior Inimigo da Pessoa". Fiquei abismado.
- Por quê?
- Porque sempre escrevi para não cometer suicídio, que o suicídio é deplorável, condenável nos princípios da evolução humana! Fui informado que esta visão contém exageros, pois sempre ignorei que ninguém se suicida por diversão, mas custei a entender isso.
- E aí?
- Aí é que eu percebi o quanto os apelos para "amar o sofrimento" e "vencer a si mesmo" inspiraram mais os suicídios do que intimidá-los. Esqueci que, para o suicida, não há diferença entre o abismo da vida e o abismo do além-túmulo.
Fulano ficou ainda mais triste. E ele viu outras pessoas. Uma senhora com ares de vovó bondosa, reduzida aos farrapos de si mesma, e que era palestrante espírita e dizia psicografar grandes historiadores e memorialistas brasileiros.
Ao falar com essa senhora, Fulano ficou chocado ao saber que os "historiadores" e "memorialistas" vinham de sua cabeça. Até o livro atribuído a Pero Vaz de Caminha, que nem de longe lembrava o estilo deixado por ele na sua famosa carta, foi ela mesma que inventou.
Outros supostos médiuns, que pareciam verdadeiros maestros das palavras tão belas que soavam melodiosas, além de supostos filantropos, que se glorificavam demais pelo pouco que ajudavam em favor dos pobres, também se revelavam zumbis de aparência aterrorizante.
Havia até mesmo pessoas relativamente jovens, que na Terra foram internautas sempre a defender seus ídolos religiosos, e caprichavam nos argumentos persuasivos que, de maneira insistente, escreviam nas redes sociais.
Pessoas que se achavam com a razão, vinculadas a Allan Kardec, Jesus, cientistas e intelectuais e ativistas do maior gabarito.
Mas que acabavam discordando delas pela forma com que professavam o Espiritismo, reduzido a um pastiche medieval do Catolicismo de hoje.
- O que fez vocês ficarem nessa zona tão sombria, gelada e escura? - perguntou Fulano a um internauta que se dizia espírita.
- É o nosso pavor pelo que fizemos e pensamos. Dissimulamos tanto que dissimulávamos tudo a nós mesmos. Fingíamos a nós mesmos que não praticávamos o igrejismo retrógrado que praticamos. E eu mesmo tinha que argumentar e contrargumentar em favor da Deturpação.
- Deturpação?
- Sim, a diluição igrejeira da Codificação. Nos irritávamos com isso. Dizíamos que não havia deturpação, que o igrejismo fazia parte da Codificação e botávamos na conta de Kardec coisas que ele reprovaria sem um pingo de hesitação.
O internauta estava abismado. Sentia muita dor pelo que havia escrito.
- Eu escrevi centenas de argumentos tentando defender o impensável. Quantas contradições eu escondi sob o aparato de palavras que usei para convencer as pessoas. Que dor, ao saber que escrevi tantas bobagens pensando serem argumentos de lógica e bom senso.
- Sente remorso pelo que escreveu? - disse Fulano ao internauta.
- Sinto, e muito! Ah, como não gostaria de ter escrito tais palavras, defendendo ídolos religiosos e dogmas que não fazem sentido. Eu estava perdido mergulhado nas paixões religiosas, e pensava estar tomado de pleno esclarecimento das coisas. Ah, que dor! Quantas bobagens escrevi, na tentativa vã de estar certo em tudo!
- E quem é que mais sofre com isso, no grupo de vocês? - perguntou Fulano ao internauta. Ele respondeu:
- É aquele senhor ali, cabisbaixo. Ele não pode mais falar. Ele se definiu como palestrante e médium espírita e, com uma carreira de belas oratórias, acreditava estar a caminho do Céu. Quanta desilusão quando ele, ao retornar ao mundo espiritual, percebeu que estava longe do destino que ele acreditava ter sido certo.
- E como ele reagiu a isso?
- Não fala mais, envergonhado com as palavras que ele tanto embelezou para praticar igrejismo barato. Está triste, envergonhado consigo mesmo, ao ver que o sábio que ele pensava ser não era mais do que um ignorante intransigente e irresponsável. Nós estamos desiludidos mas ele é o que mais ficou chocado com sua situação.
- E aí vocês formaram esse umbral?
- O umbral, no fundo, não existe - disse o internauta - , mas nós, que entendemos mal a Doutrina Espírita, imaginamos esse ambiente, tanto que a gente acabou criando esse terreno do horror e dos lamentos que nós, em grupo, pelas afinidades no choque moral obtido, acabamos ficando.
- E que lição vocês aprenderam com isso?
- A de que não podemos nos julgar esclarecidos pelo aparato de paixões religiosas e pela dissimulação que o pedantismo, que finge apreciar a Ciência, a Lógica e o Bom Senso, fez em nossas almas. Fingimos tanto que éramos esclarecidos que passamos a acreditar na nossa mentira e, com isso, achar que poderíamos conquistar o Céu com arremedos de boas mensagens e ações. Não se conquista o Paraíso com um simples mel de palavras.
Essas zonas, denominadas "umbrais", são na verdade ambientes construídos pela convenção de uma psique comum de espíritos marcados pelo atraso moral e intelectual.
O homem, que chamaremos de Fulano, ficou bastante chocado com a aparência dos espíritos, que, nas suas paixões materialistas, contraíam aparências monstruosas por conta de seus maus instintos.
Mas Fulano ficou ainda mais chocado quando prestou mais atenção à aparência dos zumbis.
Viu em vários deles uma forte semelhança com aqueles que, na Terra, pareciam estar destinados ao Céu.
Ele se dirigiu a um homem, que em Terra parecia um cinquentão elegante, amigo da bela palavra, e que estava em frangalhos parecendo uma versão monstruosa do que era em vida.
- O que você está fazendo aqui, meu amigo? Que estado lastimável é o que você se encontra!
- Pois é - disse o infeliz, amargando um olhar tristonho. - Fui um palestrante espírita na Terra. Toda a vida me dediquei à bela palavra, aos bons atos, fui simpático com todo mundo, achava que pregava o amor, a fé, a perseverança.
- E o que você faz aqui neste ambiente tão sombrio. Não é para você estar ao lado de Jesus? - perguntou Fulano.
- Eu tinha certeza que sim. Mas me lembraram, quando voltei ao mundo espiritual, eu havia feito textos e palestras defendendo o sofrimento alheio.
- E o que você fez?
- Eu me expliquei. Disse que não defendia o sofrimento, o que eu quis dizer é que o sofrimento é um aprendizado e um desafio e que aquela coisa de "inimigo de si mesmo", no meu texto "O Pior Inimigo da Pessoa", era uma metáfora para o combate aos maus instintos.
- E o que disseram os funcionários do Céu?
- Eles me falaram que eu fui taxativo no texto e que não viu metáfora alguma. E fui informado de que dois suicídios haviam ocorrido sob influência do texto "O Pior Inimigo da Pessoa". Fiquei abismado.
- Por quê?
- Porque sempre escrevi para não cometer suicídio, que o suicídio é deplorável, condenável nos princípios da evolução humana! Fui informado que esta visão contém exageros, pois sempre ignorei que ninguém se suicida por diversão, mas custei a entender isso.
- E aí?
- Aí é que eu percebi o quanto os apelos para "amar o sofrimento" e "vencer a si mesmo" inspiraram mais os suicídios do que intimidá-los. Esqueci que, para o suicida, não há diferença entre o abismo da vida e o abismo do além-túmulo.
Fulano ficou ainda mais triste. E ele viu outras pessoas. Uma senhora com ares de vovó bondosa, reduzida aos farrapos de si mesma, e que era palestrante espírita e dizia psicografar grandes historiadores e memorialistas brasileiros.
Ao falar com essa senhora, Fulano ficou chocado ao saber que os "historiadores" e "memorialistas" vinham de sua cabeça. Até o livro atribuído a Pero Vaz de Caminha, que nem de longe lembrava o estilo deixado por ele na sua famosa carta, foi ela mesma que inventou.
Outros supostos médiuns, que pareciam verdadeiros maestros das palavras tão belas que soavam melodiosas, além de supostos filantropos, que se glorificavam demais pelo pouco que ajudavam em favor dos pobres, também se revelavam zumbis de aparência aterrorizante.
Havia até mesmo pessoas relativamente jovens, que na Terra foram internautas sempre a defender seus ídolos religiosos, e caprichavam nos argumentos persuasivos que, de maneira insistente, escreviam nas redes sociais.
Pessoas que se achavam com a razão, vinculadas a Allan Kardec, Jesus, cientistas e intelectuais e ativistas do maior gabarito.
Mas que acabavam discordando delas pela forma com que professavam o Espiritismo, reduzido a um pastiche medieval do Catolicismo de hoje.
- O que fez vocês ficarem nessa zona tão sombria, gelada e escura? - perguntou Fulano a um internauta que se dizia espírita.
- É o nosso pavor pelo que fizemos e pensamos. Dissimulamos tanto que dissimulávamos tudo a nós mesmos. Fingíamos a nós mesmos que não praticávamos o igrejismo retrógrado que praticamos. E eu mesmo tinha que argumentar e contrargumentar em favor da Deturpação.
- Deturpação?
- Sim, a diluição igrejeira da Codificação. Nos irritávamos com isso. Dizíamos que não havia deturpação, que o igrejismo fazia parte da Codificação e botávamos na conta de Kardec coisas que ele reprovaria sem um pingo de hesitação.
O internauta estava abismado. Sentia muita dor pelo que havia escrito.
- Eu escrevi centenas de argumentos tentando defender o impensável. Quantas contradições eu escondi sob o aparato de palavras que usei para convencer as pessoas. Que dor, ao saber que escrevi tantas bobagens pensando serem argumentos de lógica e bom senso.
- Sente remorso pelo que escreveu? - disse Fulano ao internauta.
- Sinto, e muito! Ah, como não gostaria de ter escrito tais palavras, defendendo ídolos religiosos e dogmas que não fazem sentido. Eu estava perdido mergulhado nas paixões religiosas, e pensava estar tomado de pleno esclarecimento das coisas. Ah, que dor! Quantas bobagens escrevi, na tentativa vã de estar certo em tudo!
- E quem é que mais sofre com isso, no grupo de vocês? - perguntou Fulano ao internauta. Ele respondeu:
- É aquele senhor ali, cabisbaixo. Ele não pode mais falar. Ele se definiu como palestrante e médium espírita e, com uma carreira de belas oratórias, acreditava estar a caminho do Céu. Quanta desilusão quando ele, ao retornar ao mundo espiritual, percebeu que estava longe do destino que ele acreditava ter sido certo.
- E como ele reagiu a isso?
- Não fala mais, envergonhado com as palavras que ele tanto embelezou para praticar igrejismo barato. Está triste, envergonhado consigo mesmo, ao ver que o sábio que ele pensava ser não era mais do que um ignorante intransigente e irresponsável. Nós estamos desiludidos mas ele é o que mais ficou chocado com sua situação.
- E aí vocês formaram esse umbral?
- O umbral, no fundo, não existe - disse o internauta - , mas nós, que entendemos mal a Doutrina Espírita, imaginamos esse ambiente, tanto que a gente acabou criando esse terreno do horror e dos lamentos que nós, em grupo, pelas afinidades no choque moral obtido, acabamos ficando.
- E que lição vocês aprenderam com isso?
- A de que não podemos nos julgar esclarecidos pelo aparato de paixões religiosas e pela dissimulação que o pedantismo, que finge apreciar a Ciência, a Lógica e o Bom Senso, fez em nossas almas. Fingimos tanto que éramos esclarecidos que passamos a acreditar na nossa mentira e, com isso, achar que poderíamos conquistar o Céu com arremedos de boas mensagens e ações. Não se conquista o Paraíso com um simples mel de palavras.
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